quarta-feira, 26 de novembro de 2014

SOJA : PRODUÇÃO DE BIODIESEL NO MATO GROSSO

Agronegócio da soja domina produção de biodiesel no Mato Grosso

Os poucos agricultores familiares vinculados ao programa federal produzem soja com apoio empresarial. Indústria mato-grossense recorre a pequenos produtores de outras regiões
Por André Campos 
Campo Verde (MT) – O Mato Grosso possui atualmente 547 assentamentos, segundo balanço divulgado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em janeiro de 2014. Desse total, uma parcela diminuta – aproximadamente 15, de acordo com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Mato Grosso (Fetagri-MT) – abriga produtores inseridos no Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB). São apenas mil famílias beneficiadas entre as mais de 130 mil famílias assentadas naquele estado.
Trata-se de uma parcela irrisória também no universo das cerca de 100 mil famílias de agricultores familiares que, em nível nacional, fazem parte do PNPB. Um número que contrasta com a importância do Mato Grosso na produção de biodiesel. Estão localizadas no estado 20 das 63 usinas atualmente autorizadas a produzir o combustível pela Agência Nacional de Petróleo (ANP). Trata-se da unidade da federação com maior número de usinas instaladas. Elas respondem por 26% da capacidade produtiva do país.
Escola no Assentamento Dom Osório. Fotos: André Campos
Escola no assentamento Dom Osório, em Campo Verde (MT). Fotos: André Campos
A agricultura familiar inserida localmente na cadeia produtiva do biodiesel é virtualmente toda oriunda dos projetos oficiais de reforma agrária. Tratam-se de assentamentos localizados em importantes polos agroindustriais, como Sinop, Sorriso e Lucas do Rio Verde, ou, ainda, alguns em municípios adjacentes. A grande distância da maioria dos assentamentos locais para os polos industriais do estado, infraestrutura interna deficiente – acesso à água etc. – dificuldades para o escoamento da produção devido às más condições das estradas, problemas fundiários, ambientais e de acesso a crédito, além de lacunas na assessoria aos parceleiros, são apenas alguns dos obstáculos comumente associados a uma expansão mais robusta do PNPB nas áreas de reforma agrária do Mato Grosso.
Das 20 usinas mato-grossenses, 13 possuem atualmente o Selo Combustível Social. Para cumprir os requisitos necessários à manutenção do incentivo, no entanto, o setor recorre fortemente à matéria-prima produzida por agricultores familiares de outros estados, como, por exemplo, da região Sul do Brasil. Dados de 2012 do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) mostram que, do total de famílias participantes do selo, 63% encontram-se na região Sul, 29% no Nordeste e apenas 5% no Centro-Oeste. Há, ainda, 3% no Sudeste e uma parcela não significativa oriunda da região Norte.
A concentração das aquisições de matérias-primas da agricultura familiar na região Sul do país é um dos principais questionamentos enfrentados pelo PNPB. Para alterar essa realidade, uma das ideias comumente defendidas é imposição de uma nova exigência para a concessão do Selo Combustível Social: a de que um percentual da matéria-prima proveniente da agricultura familiar tenha origem na região onde se localiza a unidade industrial.
O objetivo do selo é fomentar e realizar a inclusão da agricultura familiar do Brasil, sem distinção de região à qual o pequeno produtor pertença
Essa proposta enfrenta veemente resistência do Sindicato das Indústrias de Biodiesel no Estado de Mato Grosso (Sindibio-MT). “O objetivo do selo é fomentar e realizar a inclusão da agricultura familiar do Brasil, sem distinção de região à qual o pequeno produtor pertença”, defende a entidade em manifesto encaminhado ao MDA, em junho de 2013. “Tratando-se especificamente de Mato Grosso, é de conhecimento que a organização da agricultura familiar ainda está incipiente e existem diferenças regionais que não permitem, neste momento, acesso ao programa por grande parte dos pequenos produtores, que encontram enormes dificuldades de acesso a crédito, regularização fundiária, entre outros problemas.”
Dom Osório
Localizado no município de Campo Verde (MT), a aproximadamente 180 quilômetros da capital Cuiabá, o assentamento Dom Osório destaca-se como um dos projetos de reforma agrária do Estado com maior inserção no PNPB. Sua área, de 10 mil hectares, foi homologada pelo Incra em 2008. Lá vivem cerca de 600 famílias, das quais aproximadamente um terço está engajado na produção de soja para a cadeia produtiva do biodiesel. A participação dos assentados no programa chegará à sua quinta safra em 2014. A Biocamp, usina localizada no mesmo município, é atualmente a única compradora dessa produção, aponta o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Verde.
Em abril de 2010, a Repórter Brasil abordou a realidade do assentamento Dom Osório em um relatório sobre os impactos da soja na safra 2009/2010. Foi possível constatar na ocasião que a não formalização dos parceleiros tornava o biodiesel a única fonte de investimento externo para os assentados locais. Em 2010, as famílias ainda não haviam obtido do Incra sequer o Contrato de Concessão de Uso (CCU), que transfere, em caráter provisório, o imóvel rural ao beneficiário da reforma agrária. Esse documento é o primeiro passo no longo processo burocrático que permite aos assentados o acesso definitivo à terra e às linhas de crédito disponibilizadas pelo governo.
Passados quatro anos, esse processo de regularização ainda está incompleto. “O CCU só foi liberado recentemente, e há mais de 100 lotes para os quais o documento ainda não saiu”, afirma Neison Costa Lima, presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Assentamento Dom Osório. Como consequência, os parceleiros, seis anos após a homologação do assentamento, ainda não conseguiram acessar os recursos do Crédito Apoio Inicial – linha de financiamento do Incra para a instalação das famílias nos lotes – e do Programa Nacional de Fortalecimento Agricultura Familiar (Pronaf), principal fonte de crédito para atividades produtivas em projetos de reforma agrária.
Neison Costa Lima, presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Assentamento Dom Osório, em lote de soja
Nesse contexto, os recursos oriundos da comercialização da soja ajudaram a suprimir as lacunas das políticas oficiais para a solução de problemas básicos de infraestrutura, como, por exemplo, o acesso das famílias à água. Lima afirma que, com o dinheiro do programa do biodiesel, aproximadamente 200 poços artesianos foram perfurados nos lotes locais. “Já discuti com autoridades que se dizem contrárias ao plantio da soja em assentamentos”, conta Reginaldo Campos, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Verde. “Eu também não sou muito favorável, mas na situação em que se encontram as famílias, esse plantio foi importante sim, pois eles não tinham outro meio de sobrevivência.”
A falta de regularização fundiária também é um problema para a inserção dos assentados no PNPB. De acordo com as normas para a manutenção do Selo Combustível Social, as usinas beneficiadas precisam apresentar ao MDA a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) dos fornecedores. Os moradores de Dom Osório, no entanto, ainda não possuem o documento. Frente a essa realidade, o sindicato dos trabalhadores solicita ao ministério, a cada safra, a emissão de DAPs provisórias para os parceleiros participantes do programa. A instabilidade desse arranjo, que precisa ser renovado anualmente para viabilizar a venda da colheita, gera incertezas e insegurança para as famílias assentadas, e inibe, portanto, a adesão de novos participantes na cadeia produtiva do biodiesel.
Arrendamento
Além dos problemas burocráticos, a inserção do programa de biodiesel no assentamento Dom Osório também enfrenta questionamentos devido à relação estabelecida entre a Biocamp, a usina compradora, e os parceleiros. A parceria com os assentados envolvia comando e ingerência da empresa em diversas etapas da produção. A Biocamp era responsável, por exemplo, pelo fornecimento dos insumos, pelo preparo do solo, pelo plantio e pela colheita nos lotes fornecedores. Cabia ao agricultor pouco mais do que o manejo da lavoura durante o período de maturação da safra.
“A empresa, além de fornecer a semente e o insumo, faz todo o acompanhamento, da plantação à colheita, ficando o assentado como mero espectador”, coloca Euzemar Fátima Lopes Siqueira, pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Em tese de mestrado defendida em abril de 2011, ela analisou a inserção dos produtores de Dom Osório no PNPB. Identificou, num universo de nove entrevistados, que somente um possuía conhecimento técnico sobre a produção da matéria-prima para o biodiesel. A maioria não demonstrava interesse nesse conhecimento, e sim nas benfeitorias – limpeza e correção do solo – oriundas da parceria. Além disso, 63% dos entrevistados sequer sabiam o que era o Selo Combustível Social.
Em 2009, essa situação levou o Incra a opor-se oficialmente ao arranjo estabelecido entre a indústria e os assentados. No entendimento do órgão, os contratos de compra e venda entre as partes escondiam, na verdade, o arrendamento dos lotes bela Biocamp – prática ilegal segundo as normas da reforma agrária. Mas, para o MDA, órgão ao qual o Incra está subordinado, a relação estabelecida constituía uma modalidade de financiamento da lavoura condizente com os parâmetros do Selo Combustível Social.
Na situação em que se encontram as famílias, o plantio de soja foi importante sim, pois eles não tinham outro meio de sobrevivência
Em 2012, uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) em áreas de reforma agrária do Mato Grosso coadunou a visão do Incra. O documento revelava que boa parte do assentamento Dom Osório havia sido arrendada pela usina, “que, inclusive, utiliza as antigas instalações da sede da fazenda desapropriada como base de operações”. Os questionamentos enfrentados levaram a empresa a suspender o fornecimento dos insumos aos agricultores locais nas safras de 2011/2012 e 2012/2013. Assentados ouvidos pela Repórter Brasilrelatam prejuízos, tendo em vista que não acessaram ainda os recursos do Pronaf – enfrentam, portanto, grandes dificuldades para financiar atividades produtivas. Para os que permaneceram no programa do biodiesel, a queda de produtividade da lavoura de soja foi um dos problemas relatados, tendo em vista a necessidade não atendida de correção da acidez do solo.
Lançado pela ONG Repórter Brasil em abril de 2010, o relatório “Os impactos da soja na safra 2009/10” relatava depoimentos de agricultores no Mato Grosso sobre fraudes que visavam burlar as normas do Selo Combustível Social. No intuito de aumentar o número de parceiros da agricultura familiar para atender às exigências do selo, diversas empresas estariam envolvidas na “compra” de DAPs de assentados não envolvidos com a produção da soja. Ao firmar contratos fictícios com tais produtores, elas podiam justificar a aquisição de outras fontes de matéria-prima como supostamente sendo oriundas da agricultura familiar.
Novos relatos ouvidos pela ONG em 2014 sugerem a continuidade dessas mesmas tentativas. Além disso, representantes sindicais – cabe a entidades representativas dos agricultores homologar os contratos de compra e venda no âmbito do selo – também revelam que o programa do biodiesel tem incentivado fazendeiros a arrendarem áreas em projetos de assentamento, como forma de se apropriar indevidamente das vantagens comerciais oferecidas pelo PNPB à agricultura familiar. A Repórter Brasil não dispõe de provas dessas práticas, e reproduz o conteúdo de depoimentos colhidos.
Plantação de soja no assentamento Dom Osório
Monocultura
Assim como em Dom Osório, a lavoura da soja ocupa virtualmente toda a produção dos outros assentamentos que abastecem as usinas de biodiesel no Mato Grosso. Na avaliação da Fetagri-MT, esse é um dos principais obstáculos para o avanço do programa no estado, visto que a viabilidade econômica dessa cultura, no Centro-Oeste, está fortemente atrelada à produção em grandes áreas e a ganhos de escala. “Quando os preços caírem, os assentados do programa vão ficar numa situação muito difícil”, acredita Nilton José de Macedo, responsável pela Secretaria de Política Agrícola da entidade.
Para Macedo, a produção local de soja em projetos da reforma agrária já chegou ao limite das suas possibilidades de expansão. A Fetagri-MT defende a viabilização de outras oleaginosas, adaptadas às condições da agricultura familiar no estado, como alternativa para o crescimento do programa de biodiesel nos assentamentos. Uma demanda que ainda esbarra na falta de resultados concretos nas pesquisas locais para identificar e viabilizar outras culturas, como o pinhão manso, o girassol e o amendoim.
No Mato Grosso, outra alternativa em debate é a inclusão de outras culturas, que não necessariamente oleaginosas, na lista das matérias-primas da agricultura familiar passíveis de serem adquiridas para a obtenção do Selo Combustível Social. A medida é defendida não só por representantes sindicais dos trabalhadores rurais, mas também pelo setor produtivo. O Sindibio-MT, que representa 14 indústrias de biodiesel do estado, defende a inclusão do milho e do feijão no programa. Tais culturas não seriam utilizadas para a produção do combustível, podendo ser revendidas pelas empresas no mercado.
Em fevereiro de 2008, o Conselho Monetário Nacional, órgão vinculado ao Banco Central, aprovou a Resolução 3545/08, que estabelece um conjunto de condições ambientais para o acesso ao crédito agropecuário em áreas situadas nos municípios do bioma amazônico. Elas incluem, por exemplo, a exigência de que fazendas ou lotes estejam em situação regular em relação à Reserva Legal e à Área de Preservação Permanente – ou, ao menos, que tenham dado entrada em procedimento formal para regularização junto ao órgão ambiental estadual. Além disso, também ficaram impedidos de obter financiamento os imóveis presentes na lista de áreas embargadas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Assentamentos embargados
Com diversos assentamentos localizados na região amazônica, a agricultura familiar do Mato Grosso foi bastante impactada pela medida. Ainda em 2008, o Ibama divulgou um ranking das 100 maiores áreas embargadas por desmatamento ilícito na Amazônia Legal. Todas as seis primeiras posições eram ocupadas por projetos da reforma agrária em terras mato-grossenses, cujos assentados viram-se impedidos de acessar os recursos do Pronaf.
Além de alijados de financiamento, muitos parceleiros também passaram a enfrentar dificuldades crescentes para escoar a produção de seus lotes. O decreto presidencial nº 6.514, outra das medidas aprovadas em 2008, tornou um crime sujeito a pesadas multas o comércio de produtos agropecuários produzidos em áreas objeto de embargo. Incorria na infração não apenas quem vendia, mas também o comprador da produção. Tal situação foi mais um dos entraves para o avanço do programa do biodiesel em áreas de agricultura familiar do estado. Em 2008, dezenas de famílias no assentamento Boa Esperança, em Nova Ubiratã (MT), haviam convertido seus lotes para a produção de soja voltada ao PNPB. Naquele mesmo ano, no entanto, a Operação Arco de Foco, deflagrada pelo Ibama, embargou toda a área do assentamento. Como resultado, os participantes do programa não tiveram seus contratos de compra e venda renovados para a safra seguinte.
As consequências dessa realidade perduram até hoje, tendo em vista que muitos projetos de reforma agrária ainda estão sem a devida regularização ambiental. Para obter o desembargo de áreas, produtores rurais precisam fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de suas propriedades na Secretaria estadual do Meio Ambiente – o documento delimita oficialmente o perímetro das áreas de preservação no imóvel.
O próprio assentamento Boa Esperança ainda permanece, seis anos depois, na lista de áreas embargadas do Ibama. Para que seja efetuado o desembargo, o órgão exige a elaboração do Cadastro Ambiental Rural (CAR) em ao menos 70% dos lotes do assentamento.
Cooperativismo
O fomento ao cooperativismo é apontado pelo MDA como uma das estratégias centrais para a inclusão sustentável da agricultura familiar no PNPB. Organizados em cooperativas, os pequenos produtores, na visão do órgão, passam a ter maiores vantagens em termos de escala de produção, redução de custos e logística, bem como facilidades de acesso a insumos e tecnologias de produção. Além disso, obtêm maior poder de barganha na negociação de contratos com as usinas compradoras e outras empresas.
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Placa mostra incentivos fiscais à Biocamp, usina que compra a produção de assentamentos
O MDA incentiva a inserção de cooperados na cadeia produtiva do biodiesel através do Selo Combustível Social. Para a obtenção e manutenção do incentivo, que demanda percentuais mínimos de aquisição de matéria-prima da agricultura familiar, as indústrias produtoras podem contabilizar as compras oriundas de cooperativas que tenham ao menos 60% de agricultores familiares entre seus integrantes. Das 111 organizações do gênero habilitadas atualmente para participar do selo, apenas cinco estão no Mato Grosso. Mais da metade das cooperativas (56) é do Rio Grande do Sul.
Um levantamento realizado pela Repórter Brasil em março de 2014 mostra que, entre essas cinco cooperativas mato-grossenses, apenas uma – a Cooperativa Agropecuária Mista de Ipiranga do Norte – não possui atualmente entre seus sócios agricultores inseridos na lista de áreas embargadas do Ibama.
Fonte : Repórter Brasil

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